Cultura

Stranger Things e o Pânico Satânico

Eu nunca joguei RPG. Nunca pude. E o que isso tem a ver com a quarta temporada de Stranger Things? Tudo! Assistir Mike, Will, Dustin e Lucas jogando RPG e ouvir os Nerdcasts RPG despertam em mim uma enorme vontade de voltar no tempo e construir histórias e amizades em torno de uma boa mesa de RPG. Talvez eu ainda faça isso no futuro! A realidade é que eu cresci numa cultura evangélica onde o RPG e outras coisas eram tratadas como demoníacas. Se reunir com amigos para participar de uma aventura imaginária com guerreiros, magos, dragões, anões, elfos, bruxas e outras criaturas fantásticas era/é visto como influência maligna que nos levará ao ocultismo, tragédias e crimes.

A quarta temporada tocou nesse assunto ao retratar o início dessa mentalidade coletiva. No primeiro episódio, no refeitório do colégio, vemos Eddie, o mestre de RPG e líder do clube Hellfire, lendo um artigo de revista que tem como Título “Dungeons and Dragons: o jogo do diabo”. O texto começa dizendo “o diabo chegou aos Estados Unidos” e atribui ao jogo coisas como adoração satânica, rituais de sacrifício, sodomia, suicídio e assassinato. O ano em que se passa esse episódio é o de 1986 e essa notícia é exatamente o tipo de notícia e de opinião pública daquela época nos Estados Unidos. A década de 80 viu explodir o fenômeno do pânico satânico.

D&D foi lançado em 1974 e no final dessa década e início da década de 80 já era um sucesso nos Estados Unidos. O jogo foi bem recebido, mas as coisas começaram a mudar na opinião pública mais conservadora e religiosa a partir de 1979. Nesse ano um garoto de 16 anos chamado James Egbert desapareceu de seu quarto na Michigan State University. Um investigador particular, William Dear, foi contratado pelos pais de James para encontra-lo. Dear concluiu que seu desaparecimento tinha a ver com D&D. O garoto tinha problemas de depressão e uso de drogas, mas a popularidade desse caso começou a levantar grandes suspeitas sobre o jogo. Egbert cometeu suicídio em 1980 e para muitos a culpa foi novamente do jogo. Em 1982 outro garoto que jogava D&D cometeu suicídio e sua mãe culpou o jogo. Ela se tornou uma famosa ativista contra D&D e muitas igrejas começaram a tratar o jogo como demoníaco. Outros casos estranhos e até macabros envolvendo ou não D&D também ajudaram a criar esse ambiente nos EUA da década de 80. Nesse tempo houve essa espécie de guerra espiritual e social contra os jogos e outros elementos “demoníacos”*.

O pânico satânico é um fenômeno social que se manifesta na crença de boa parte da população que acredita que forças espirituais do mal como o diabo e demônios estão por trás de crimes e outros acontecimentos, mesmo quando não há nenhum indício disso e outras explicações são mais plausíveis. No Brasil, por exemplo, no caso do assassino Lázaro, muitos acharam que ele estava possuído pelo diabo ou recebendo ajuda de demônios para escapar da policia. O caso Evandro na década de 90 também envolveu pânico satânico, pois se achava que a criança foi morta num ritual satânico e essa opinião pública atrapalhou bastante as investigações e influenciou o julgamento.

A igreja foi extremamente afetada por esse pânico satânico. Quem foi criança e adolescente nas décadas de 90 e 2000 na igreja brasileira sabe do que eu estou falando. RPG era algo completamente proibido por ser do demônio. Vários outros desenhos, jogos e músicas também eram alvos desses julgamentos e proibições. E muitos deles sem justificativa alguma ou com bases em mentiras que foram tão propagadas que se tornaram “reais” no meio evangélico. É por isso que, como pastor, achei interessante Stranger Things tocar nesse assunto. Muitos evangélicos sofrem do mal de achar que muita coisa é do diabo. Muitos vivem colocando a culpa de seus próprios pecados no diabo. E muitos acham que a vida espiritual se fundamenta/resume na luta contra essas coisas que suspostamente são do diabo.

O legalismo também é um problema do pânico satânico. Essa visão exagerada que dá ao diabo a posse de muitas coisas faz com que essas coisas sejam mal vistas e proibidas. Coisas, inclusive, que não representam nenhum pecado ou ritual satânico. O RPG sofreu bastante com isso. Jogos de videogame também. Programas de TV e a própria TV. A internet, filmes, a Disney, etc. Tive um pastor que julgava as Crônicas de Nárnia como sendo algo demoníaco. Sim, a fantasia cristã de C. S. Lewis! Afinal, havia magia e por meio dessa cultura do pânico satânico tudo que envolve magia é do diabo…

Essa é uma cultura cristã problemática. Quando atribuímos muita coisa ao diabo esquecemos de atribuir muita coisa a nós mesmos. Quando atribuímos muitas coisa ao diabo deixamos de aproveitar muita coisa boa da criação de Deus. Quando muita coisa se trata de poderes sobrenaturais das trevas esquecemos de lidar com os poderes maus e naturais desse mundo. E quando muita coisa é do diabo nos isolamos e criamos uma cultura legalista que pode adoecer a alma. A espiritualidade cristã é fortemente afetada quando o pânico satânico se torna uma das lentes pelas quais enxergamos o mundo. Por isso, é sempre bom lembrar do que Jesus disse:

“Porque de dentro, do coração das pessoas, é que procedem os maus pensamentos, as imoralidades sexuais, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as maldades, o engano, a libertinagem, a inveja, a blasfêmia, o orgulho, a falta de juízo. Todos estes males vêm de dentro e contaminam a pessoa.” (Mc 7:21–23)

Não podemos deixar que o pânico satânico nos faça perder o pânico contra nossos pecados. Não podemos chamar várias coisas de demoníacas por influência de histeria social. Agora, há um ponto que me faz achar Stranger Things incrível ao lidar com esse tema. Existe um mundo sobrenatural em Hawkins! O upside down está lá. Vecna é real e atua na nossa realidade! Eddie e D&D não são os culpados pelas mortes, mas um ser sinistro com poderes sobrenaturais é. Em Stranger Things há uma crítica ao pânico satânico no mesmo mundo em que forças sobrenaturais existem. Como pastor não posso terminar esse texto sem dizer que a “descrença satânica” é problemática assim como o “pânico satânico”. Isso me lembra C. S. Lewis na sua abertura de Cartas de um diabo a seu aprendiz (2017):

“Nossa raça pode cair em dois erros igualmente graves, mas diametralmente opostos quanto aos demônios. O primeiro é não acreditar na existência deles…” (p. 15)

Mais a frente, Maldanado diz a Vermelindo, seu aprendiz:

“Nossa política para o momento é de nos mantermos ocultos” (p. 46)

Umas das principais atividades de Jesus durante seu ministério entre nós foi a de expulsar demônios. Eles existem e atuam! E se eles existem é claro que alguns jogos e outras coisas podem ser problemáticos. Claro que o diabo pode usar desses elementos para influenciar pessoas, mas devemos ter cuidado nessas análises. Devemos fazer isso com convicção bíblica e não com base somente em opinião pública, boatos e teorias conspiratórias. A Bíblia e não o pânico satânico deve ser nossa ferramenta de avaliação do sobrenatural.

Esse texto bate no pânico satânico e na espiritualidade míope e legalista que ele gera, mas precisa afirmar que a descrença ou desconsideração dos demônios também afeta nossa espiritualidade cristã. Precisamos de equilíbrio! E foi esse equilíbrio que Stranger Things me mostrou. Precisamos do que vou chamar aqui de “sabedoria do sobrenatural”. Devemos ir até a Bíblia para entender como o mundo espiritual e sobrenatural funciona. Precisamos fazer como Dustin e seus amigos fizeram, encontrar o verdadeiro inimigo. E muitas vezes ele não está em jogos, filmes ou músicas, mas no próprio diabo que está fazendo você perder tempo com o pânico satânico ou em nossos próprios pecados. Talvez você esteja meio perdido como a policia de Hawkins e o time de basquete do colégio. É hora de lutar contra o verdadeiro inimigo nos principais campos de batalha.

Texto por: Pedro Pamplona
Original: Stranger Things e o Pânico Satânico | by Pedro Pamplona | Jun, 2022 | Medium

*veja essa matéria da BBC: https://www.bbc.com/news/magazine-26328105

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